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Ostinato

Insuspeitável que as superfícies de irrepreensível austeridade das pinturas de Fabio Flaks sejam capazes de reter tanta tensão em sua feitura. Não que filigranar uma infinidade de variações de uma única cor e perceber incidências mínimas de luz em papéis foscos não denunciem tenacidade e acurácia ímpares. Vê-se logo que o mesmo rigor e empenho pertinaz dirigem-se indiferentemente à observação minuciosa de motivos tão banais quanto papéis de embrulho, folhas sulfites descartadas e caixinhas de papelão. Retido no centro do quadro, cada objeto é representado em tamanho maior do que o real, conforme uma calibragem de escala que se assemelha ao ajuste de proximidades das lentes de aumento. Tal regulagem precisa impede, portanto, que os objetos se descaracterizem: são grandes apenas o suficiente para que recebam apurado tratamento tridimensional, em tudo o mais são distantes e tratados com absoluta desafetação. Afinal, não se pretende investir os materiais prosaicos de vitalidade no intuito de devolver-lhes um encantamento, desde há muito, deles destituído. A pintura de Fabio Flaks jamais partiria de premissa tão ingênua. Na verdade, o que orienta a escolha dos materiais é sua justa adequação ao exercício de uma frieza analítica desassombrada. De fato, o trabalho de observação é rigorosamente analítico, mais do que isso, analiticamente obstinado, dedicado a reorganizar visualmente cada aresta, cada dobra desamassada, cada plano facetado, e a conferir volume palpável ao mínimo intervalo entre dois tons, torná-los táteis aos olhos, convidá-los a pacientemente perceber as sutilezas do arranjo combinatório de nuances conseguidas com esmerado empenho. Se, por um lado, contenção e reiteração são os procedimentos básicos que constroem as áreas acinzentadas, as coloridas, por outro lado, comportam-se como campos de extravasamento. Ainda que ocupem pequenos espaços, os tons de azul, o laranja, o amarelo e, principalmente, o vermelho apresentam densidade tal que se convertem a um só tempo em pontos focais dos quadros e prováveis pontos de fuga da arquitetura rarefeita do espaço expositivo.

As superfícies de “Cinza” são exemplares das operações recorrentes na obra de Fabio Flaks e, dentre todas elas, a repetição se sobressai ali como o método mais reincidente, tanto que o artista costuma emprestar um termo da teoria musical para descrevê-lo: “ostinato”, uma figura melódica ou rítmica repetida persistentemente ao longo de toda uma composição, com variações mínimas. Repetir obstinadamente um tema à exaustão é, antes de mais nada, forjar para o transcurso do tempo uma cadência muito particular, o que, no caso da obra de Flaks, implica regular o metrônomo para medir um tempo que parece escoar a esmo, mas que, no entanto, é o estritamente necessário para a consecução correta do método. Lembro-me de alguns personagens de Samuel Beckett e do modo impassível com que persistem na consecução de rotinas que se parecem com mecanismos de drenagem de tempo. Há um deles, Watt, que para ir de um ponto a outro, em linha reta, percorre o espaço em ângulos sucessivos e sem dobrar seus joelhos: para ir ao leste, por exemplo, ele gira o tronco o máximo possível para o norte, lançando simultaneamente a perna direita o máximo possível para o sul e, depois, gira o tronco o máximo possível para o sul, lançando simultaneamente a perna esquerda o máximo possível para o norte, e por aí fora, sucessivamente, até chegar ao seu destino. Por vezes, atribui-se dificuldade ao que deveria ser simples e, por outras, faz-se parecer simples aquilo que exigiu muito esforço. Já a dilação do tempo engastado nestas pinturas é da ordem de uma busca por precisão e que, ao fim, restitui à experiência artística a mesma densidade exigida de sua feitura. Afinal, qual é a graça de se ir de um ponto a outro em linha reta?

Liliane Benetti, abril de 2013.

Liliane Benetti é doutoranda em História, Teoria e Crítica de Arte pela Universidade de São Paulo, bolsista da CAPES e do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE-CAPES), tendo realizado pesquisa junto à The New School, Nova York. Integrante do Centro de Pesquisas em Arte Brasileira do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP e do Grupo de Pesquisa sobre Samuel Beckett do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP. Possui graduação em Artes Plásticas pela Escola de Comunicações e Artes da USP (2007), além de graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1998) e Mestrado em Filosofia do Direito pela mesma instituição (2002).

Ostinato

Insuspectable that the surfaces of irreproachable austerity of Fabio Flaks paintings are capable of retaining so much tension in their making. Not that to filigree a multitude of variations of a single color and to notice minute incidences of light on matte papers do not denote unmatched tenacity and accuracy. One sees immediately that the same rigor and pertinacious commitment are addressed indifferently to the detailed observation of motifs as mundane as wrapping paper, discarded sulfite paper and cardboard boxes. Held at the center of the painting, each object is represented in larger-than-actual size, in accordance to a calibration scale that resembles the proximity setting of magnifying lenses. Thus such precise regulation prevents the objects from losing their characteristics: they are just large enough to receive refined tridimensional treatment, in everything else they are kept afar and treated with absolute unaffectedness. After all, the intention is not investing these prosaic materials with vitality in order to give back to them an attractiveness they have long lacked. Fabio Flaks’ painting would never depart from so naïve a premise. Actually, what guides the choice of materials is their perfect adequacy to an exercise of fearless analytical coldness. Indeed, the observation work is rigorously analytical, more than that, analytically obstinate, dedicated to visually rearrange each edge, each smoothed out fold, each faceted surface, and give palpable volume to the smallest interval between two tones, to make them tactile to the eyes, to invite them to patiently perceive the subtleties of the shuffling of nuances achieved with painstaking effort. If, on the one hand, containment and reiteration are the basic procedures that build the grey areas, the colored ones, on the other hand, behave like fields for overflowing. Though occupying small spaces, the shades of blue, orange, yellow and especially red feature such density that they are converted both into focal points of the painting and possible vanishing points of the rarefied architecture of the exhibition space .

The surfaces of “Cinza” – Grey – are examples of the recurrent operations in Fabio Flaks’ works and, among all of them, repetition stands out as the most frequent method, so much so that the artist usually borrows a term from music theory to describe it: “ostinati”, a melodic or rhythmic figure consistently repeated throughout an entire composition with minor variations. Stubbornly repeating a theme to exhaustion is, first of all, to forge the course of time in a very particular cadence, which, in the case of the Flaks’ work, implies to set up the metronome to measure a time that seems to pass at random, but that, nonetheless, is strictly necessary to achieve the correct method. I recall some of Samuel Beckett’s characters and the impassive way in which they persist in performing routines that resemble mechanisms of time drainage. There is one, Watt, who, in order to get from one point to another in a straight line, travels through space at successive angles and without bending his knees: to go east, for instance, he rotates his trunk as much as possible north, while at the same laying his right leg as much as possible south and then turns his trunk as much as possible south, while laying his left leg as much as possible north, and so on and so forth, until he reaches his destination. Sometimes difficulty is attributed to what should be simple and, other times, things that seem simple actually required much effort. The extension of a time that is already clamped in these paintings is about a quest for accuracy that, ultimately, restores to the artistic experience the same density required for their making. After all, what's the fun of going from one point to another in a straight line?

Liliane Benetti, April of 2013.

Liliane Benetti is a Ph.D. candidate in Art History, Theory and Critic at the University of São Paulo (USP), and has a PDSE-CAPES scholarship, having conducted research at New York’s New School. She is a member of the Research Center in Brazilian Art of ECA-USP’s Department of Visual Arts and of the Samuel Beckett’s Research Group of the FFLCH-USP’s Department of Literary Theory and Compared Literature. She has a degree in Visual Arts from USP’s School of Communications and Arts (2007), in addition to a degree in Law from USP’s Law School (1998) and a Master’s Degree in Philosophy of Law from the same institution (2002).

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