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Visibilidades, vestígios, métodos

É uma imagem intrigante em nossos dias. O artista representa a si mesmo de costas e com protetores de ouvido, como se recusasse uma proximidade e pedisse respeito à sua introspecção. Autorretrato sem Óculos e com Protetores Auditivos dá à Luz Vermelha, individual de Fabio Flaks dentro da Temporada de Projetos 2015 do Paço das Artes, um tom ao mesmo tempo provocativo e que também convida a uma reflexão mais detida, um mergulho por obras em que coabitam uma vistosa visualidade ao lado de práticas e investigações mais recolhidas e intimistas. Atesta-se a reinvenção cotidiana e não ostensiva de um gênero – o autorretrato – e de uma linguagem – a pintura – da história da arte, em tempos hipermediados e de veiculação instantânea e massiva como anteriormente jamais fora visto.

“Quando se pensa em retrato, sempre se pensa no rosto. O rosto é o principal portador da identidade do indivíduo. A memória está habituada a reconhecer visualmente as pessoas principalmente por suas caras. Por todos os lados, nos exigem fotos de identidade, em aeroportos nos ‘retratam’, a polícia faz retratos-robot de procurados para tentar localizá-los”, nos lembra Gerardo Mosquera no texto Interfaces – Retrato e Comunicação. E, ao conhecermos a produção do artista paulistano, em que há quase uma absoluta ausência da figura humana (mas não do humano _ esse é concreto e pulsa, mesmo que por ambientes de assepsia, limpeza e segurança, em termos formais, construídos obsessivamente), tal trabalho nos surpreende.

“Um autorretrato é talvez o trabalho que eu nunca faria. E acho que por isso mesmo fiz. É uma ideia antiga que sempre deixei de lado. (…) Nele temos um embate entre introspecção e extroversão. Numa obra em que o artista usa sua própria imagem, ele se expõe bastante ao público, mas nesta me retratei praticamente de costas e ainda me mostro protegido contra sons e imagens numa atitude objetivamente introspectiva”, explica Flaks.

A ironia realizada pelo artista ganha contornos bastante atuais quando se pensa na onipresença do selfie, um fenômeno que carece de leituras, análises e interpretações. Uma das mais interessantes, em âmbito nacional, é a de Muniz Sodré, professor emérito da UFRJ: “(…) Os conceitos de espetacularização e narcisismo já se revelam insuficientes para dar conta dessa nova ‘forma de ser’ compatível com a financeirização e com a tecnologia eletrônica. Mais vale atentar para a espetacularização ou o gozo do estar-conectado, como uma nova forma de estar-no-mundo em que o sujeito parece existir apenas quando reproduzido no espelho, à espera de uma conexão”.

Pois bem. A habilidade de Flaks se dá por ele engendrar o desenvolvimento de uma pesquisa própria e autoral junto de uma postura anti-sensacionalista que termina por fortalecer o papel ético e complexificador da arte frente a um fenômeno muito recente. O espelhamento contemporâneo adquire contornos menos simplórios e baratos e é revelador de como a imagem ainda pode ser uma peça de resistência _ mesmo que nada ruidosa e até ensimesmada.

Trajetória

A individual Luz Vermelha não se encerra em Autorretrato sem Óculos e com Protetores Auditivos. O conjunto restante de seis pinturas desdobra continuidades e rupturas relevantes no percurso do artista. Uma lâmpada de corredor de apartamento e três garrafas de vidro esvaziadas agora tornam-se objetos pictóricos.

As telas da série Festa! (2015), neste momento da produção do autor, exibem atributos outros que não estavam presentes nos quadros anteriores do conjunto. O mais visível é o realce da cor, que vira outro dos eixos basilares da mostra. A fatura muito trabalhada dos objetos em verde, vermelho e azul ajuda a compor um ambiente menos monocromático ou em cinza, cor que justamente dá título à individual anterior de Flaks, na galeria paulistana Pilar, em 2013. Cinza já anunciava a presença intromissora e quase corpórea de porções cromáticas mais fortes, como nas obras 9 Gramas (2013) e Très Haute Protection (50ml) (2013). A volumetria das garrafas também muda de uma para outra, quase como a representar uma cerveja e dois uísques que se foram. Mas, se antes a representação dessas banalidades que revelavam não a festa, mas o fim dela, trocando um hedonismo celebrativo por um torpor a lamentar o que se perdeu, hoje o recorte agrega novas significações.

Isso ocorre a partir da observação do outro conjunto de pinturas, que representam as lâmpadas em um corredor doméstico. Se o espelhamento do autorretrato, em outra parede, também fala do extracampo, já analisado neste texto, as garrafas e as lâmpadas se olham e carregam um tom especular pela expografia e por suas qualidades de fatura. É quase como se um ‘assunto pictórico’ e todo seu universo traçasse elos um com o outro, numa conversa também metalinguística, a explorar as potencialidades do meio a partir de elementos mais específicos.

“Luz Vermelha é uma mostra que transita num universo interno, mas que remete a uma vivência externa. A cor tem papel fundamental aqui, o que chegou até a me impressionar”, afirma o artista. Tal argumentação legitima o que seria uma soltura mais visível na realização desses trabalhos, em que, por exemplo, as antigas partes cromáticas diminutas de Cinza se reforçaram e tornaram-se ativos campos de cor em Luz Vermelha. Assim, o fazer de Flaks continua a se pautar por rigor, severidade, disciplina, atributos que ele sempre reforça ao falar da produção, contudo também incorpora novas configurações (não acidentais), que ajudam a transbordar mais sentidos para sua obra. Uma pintura vigorosa e vital, e não apenas fria como visões apriorísticas podem considerar.

Mario Gioia

Mario Gioia é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes desde 2011, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Luz Vermelha (2015), de Fabio Flaks, Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. É crítico convidado desde 2014 do Programa de Exposições do CCSP (Centro Cultural São Paulo) e fez, na mesma instituição, parte do grupo de críticos do Programa de Fotografia 2012/2013. No centro, produziu material crítico sobre os artistas Rodrigo Sassi, Renata De Bonis, Romy Pocztaruk, Tatiana Cavinato, Marcelo Tinoco, Beatriz Toledo e Breno Rotatori. Também no CCSP, em 2015, assina a curadoria da coletiva Ter Lugar para Ser, sobre as relações entre arquitetura e artes visuais, com participação de artistas como Caio Reisewitz, Clara Ianni, Luiza Baldan e Martinho Patrício. Coordena pelo quinto ano o projeto Zip'Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria. Na temporada 2014, assinou a curadoria de Decifrações (Espaço Ecco, Brasília), coletiva com Artur Barrio, Daniel Senise, Daniel Escobar, João Castilho, Luciana Paiva e Virgílio Neto, entre outros.

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