Fabio Flaks
Manobras radicais
Por onde andam as figuras ruidosas e coloridas adeptas do skate que poderiam ser o centro da série Aéreos, nova produção do paulistano Fabio Flaks, hoje um praticante esporádico da atividade? Ao vermos as telas que o artista produziu sobre o assunto, a ausência da algazarra tão típica da “tribo” parece ligar mais essas pinturas ao mal-estar contemporâneo do protagonista de Paranoid Park (2007), de Gus Van Sant –- filme no qual o personagem Alex (Gabe Nevins) encobre um crime algo brutal, algo involuntário, cometido por ele ao sair de uma pista de skate –-, do que do caráter mais contracultural e libertário visto por muitos no esporte.
No entanto, essa postura menos otimista é consistente dentro da poética de Flaks, que tem no vazio e na crise da representação dois de seus vetores principais, além de eleger o cotidiano como um dos nortes. Aéreos guarda semelhanças com outros trabalhos do artista, como a série Festa! (2009), na qual os resquícios do que teria sido um grande congraçamento, uma partilha hedonista, são percebidos já em fase terminal, apenas garrafas vazias que servem só de estorvo. A tela When Routine Bites Hard (2006), que congela um frame do videoclipe de Love Will Tear Us Apart, do Joy Division, também traça elos com a nova fase de Flaks, ao suspender algo idealizado para ser consumido com voracidade –- tal formato atualmente parece se dividir entre um meio com status de superprodução da indústria mainstream da música ou uma segmentada veiculação preferida de acessos de grupos, cada vez mais fechados, dentro de sites como o YouTube -- e, ao mesmo tempo, prestar um tributo às tristes notas da banda surgida na industrial Manchester.
As rampas cinzas e esvaziadas retratadas pelo artista se esboçam como recortes das estruturas maiores das pistas, cartografias urbano-arquitetônicas de concreto que pontuam a geografia do lazer de São Paulo e de outras grandes metrópoles. Também criam diálogos com edificações moderno-brutalistas tão comuns na cidade, ecos de uma ideia de progresso almejado, mas nunca completo. Contudo, em termos formais, a presença externa é um avanço na produção de Flaks, caracterizada por olhares detidos sobre a interioridade. Acima das rampas, o céu azulado, com nuvens de desenhos sedutores, cria uma quebra na simetria da construção empreendida pelo homem, gerando uma interessante fricção entre o rebuscado e o racional. A composição guarda similaridades com a escola holandesa de paisagens de nomes como Vermeer (1632-1675) e Ruysdael (1628-1682), em que a panorâmica de cidades é quase um pretexto para a ilustração de céus virtuosos.
O apuro empreendido na pintura desses firmamentos, no entanto, ganha um interessante contraponto com os desenhos de amplificadores dispostos por Flaks em uma das paredes da sala expositiva do projeto ZipUp. Neles, há o incessante e obsessivo, porém automático, trabalho manual do artista ao preencher, via grafite do lápis, as superfícies antes permeáveis e “furadas” dos equipamentos de som. As marcas presentes --Fender, Marshall -- tanto evocam a força do consumo como atestam um esvaziamento da linguagem, da palavra. Bumbo é uma obra específica realizada com o mesmo método, mas na qual os elementos indiciais, que denotam vestígios, são frisados _as áreas vazias e em branco terminam por evidenciar mais fortemente o quanto de esforço físico foi empenhado na peça.
Na exposição Aéreos, como é facilmente perceptível, Flaks se vale da multiplicidade de linguagens visuais para potencializar a opacidade das imagens que constroi. A gravura, às vezes questionada por uma alegada contemporaneidade frágil, é utilizada com habilidade pelo artista, especialmente, em Quicktimes. Tal peça assevera a intenção de Flaks em tornar singular um registro dos mais triviais, ao menos anos atrás, dentro da cultura do computador. Hoje, é um resquício algo enciclopédico de procedimento e imaginário, à época de sua criação, “antenado”, vanguardeiro, de ponta. “Nada parece ser mais universal na atual situação do que o sentimento milenarista de fim”¹, alerta Yve-Alain Bois.
Mario Gioia
Mario Gioia é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), foi o curador, em 2011, de Presenças (Zipper Galeria), inaugurando o projeto Zip Up, destinado a novos artistas (que teve como segunda mostra Já Vou, de Alessandra Duarte, com a mesma curadoria). Em 2010, fez Incompletudes (galeria Virgilio), Mediações (galeria Motor) e Espacialidades (galeria Central), além de ter realizado acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Trópico e o portal UOL, além da revista hispano-portuguesa Dardo. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.
1. BOIS, Yve-Alain. A Pintura como Modelo. Martins Fontes, São Paulo, 2009, p. 275
Radical maneuvers
Where do the noisy and colorful figures adept to skateboarding, who could be the focus of the series Aéreos, new production by São Paulo native Fabio Flaks, now a sporadic skateboarder himself, wander about? When we see the canvases the artist produced on the subject, the absence of the typical “tribal” uproar seems to link these paintings more to the contemporary malaise of the protagonist in Paranoid Park (2007), by Gus Van Sant – a film in which the character Alex (Gabe Nevins) conceals a crime that is somewhat brutal, somewhat involuntary, that he committed while leaving a skate ramp –, than to the more countercultural and libertarian character seen in the sport by most.
Nevertheless, this less optimistic stand is consistent with Flaks’s poetics, having emptiness and the crisis of representation as its two main vectors, aside from choosing the quotidian as one of his aims. Aéreos holds some resemblance to other works by the artist, such as the series Festa! (2009), in which the vestiges of what would have been a great confraternization, an hedonist partition, are perceived in their final stage as empty bottles serving as mere nuisance.The canvas When Routine Bites Hard (2006), which freezes a frame from the video of Love Will Tear Us Apart, by Joy Division, also draws links to Flaks’s new phase, in suspending something idealized to be consumed with voracity – such form currently seems to divide itself between a medium with mainstream music industry superproduction status or a segmented vehiculation preferred by group accesses, which are becoming more and more exclusive, in sites such as YouTube – and, at the same time, pay tribute to the sad notes of the band that arose in the industrial Manchester.
The empty, grey ramps depicted by the artist are sketched as cut-outs of larger structures of the skate parks, urban-architectonic cartographies of concrete that point out São Paulo’s and other large cities’ leisure geography. They also create dialogues with common modern-brutalist buildings of the city, echoes of a desired idea of progress never completed. However, in formal terms, the external presence is an advancement in Flaks’s production, characterized by glances fixed upon the interior. Above the ramps, the blue sky, with clouds of seductive shapes, breaks the symmetry of the construction undertaken by man, generating an interesting friction between the refined and the rational. The composition holds similarities with the Dutch school of landscape with names such as Vermeer (1632-1675) and Ruysdael (1628-1682), in which the panorama of cities is almost a pretext to the illustration of virtuous skies.
The precision undertaken in the painting of these heavens gains an interesting counterpoint with the sketches of amplifiers laid out by Flaks on one of the walls of the exhibition room of project Zip’Up. In these sketches there is the incessant and obsessive, nevertheless automatic, manual labor of the artist in filling in, via the lead of a pencil, the once permeable and pierced surfaces of the sound equipments. The brands presented – Fender, Marshall – evoke the power of consumption so much as they certify the emptying out of language, of speech. Bumbo is a particular work that was created using the same method, but in which the indicial methods, denoting vestiges, are stressed – the blank and empty areas serve as evidence to show how much physical effort was carried out in the piece.
In the exhibit Aéreos, as is easily perceived, Flaks avails himself of the diversity of visual languages to enhance the opacity of the images he creates. The engraving, at times questioned for some alleged fragile contemporaneity, is skillfully used by the artist, especially in Quicktimes. Such piece asserts Flaks’s intention in making extraordinary one of the most trivial records, at least some years ago, in the computer culture. Today, it is a somewhat encyclopedic remain of procedure and imagery, at the time of its creation, tuned, avant-garde, edgy. “Nothing seems to be more universal in the current situation than the millenarian sentiment of end” 1, alerts Yve-Alain Bois.
Mario Gioia
[translation by Nathalie Beltran]
A graduate of ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), he was the curator, in 2011, of Presenças (Zipper Galeria), inaugurating the project Zip’Up, destined for new artists (which had Alessandra Duarte’s Já Vou as its second show, with the same curatorship). In 2010, he did Incompletudes (Galeria Virgílio), Mediações (Galeria Motor) and Espacialidades (Galeria Central), besides conducting the critical follow-up of Ateliê Fidalga no Paço das Artes. In 2009, he curated Obra Menor (Ateliê 397) and Lugar Sim e Não (Galeria Eduardo Fernandes). He was a reporter and editor of arts and architecture for the section Ilustrada of the newspaper Folha de S.Paulo, from 2005 to 2009, and currently collaborates in various vehicles, such as the magazines Bravo and Trópico and the UOL portal, as well as in the hispanic-portuguese magazine Dardo. He is co-author of Roberto Mícoli (Bei Editora) and is part of the group of critics at Paço das Artes.
1. BOIS, Yve-Alain. A Pintura como Modelo. Martins Fontes, São Paulo, 2009, p. 275